23 de abril de 2014

Sob os efeitos tônicos da madrugada fria e dosagens altas de substâncias catastróficas

Eu sei, é madrugada, mas não consigo dormir, tampouco sei se chega a fazer sentido tudo o que há abaixo, imagens psicodélicas circundam a minha mente, e esse já é a sexta vez que ouço "Sirens" sem parar, mas eu precisava desoprimir, e essa foi a forma que encontrei de soprar o vento e a mágoa que levo de mim mesma, que soterrava o meu coração:



Você está prestes a cometer um erro, mas pensa bem, e vê, não vale a pena. Porém, um sagaz sopro conspirador do que muitos chamam de destino, te induzem, te fazem cometer tal delito com sede tão perversa que atinge seu próprio ser, sem transpor o respirar. A fala se transgride, faz com que os nervos do coração comecem a palpitar pro pior, e a sua mente cria um sensacionalismo acima daqueles receios que nunca existiram de fato. Ninguém é atrevido suficientemente a ponto de pedir perdão por aquilo que não fez por mal, ou talvez até tenha feito, mas quem disse que isso vem ao caso? Existem conjecturas que nos transmitem concomitâncias que são reprovadas automaticamente pelas ordens dos dias, perante o roteiro impetuoso que a vida consiste em se lançar para cumprir tabela. 

Manter a calma, esvair-se do som, de um futuro que te espera, não é demais. Jamais esquecendo que a clareza dos seus dias, poderão vir adiante, se você permitir, que simplesmente seja feito o balanço dos seus desperdícios até o determinado ponto em que se encontra a vida atual. De nada adianta ser absolvido, os estigmas sempre ficarão cravados na pele como uma âncora finca um barco no mar, serão sempre necessários fatos que comprovem a displicência para justificar a transgressão, e que nunca poderão ser outra vez mais vistas, sempre haverão suspicácias infindáveis amarradas à sola do sapato, munido daquilo que chamam de compaixão inexistente, então, apenas pergunto, de que adianta? Apesar dos giros do mundo serem cíclicos e muitas coisas acabarem voltando sempre pro mesmo lugar, apesar de tudo estar abarrotado de reminiscências, cabe a si mesmo o papel de continuar, seguir em frente, ver onde tudo vai acabar, e ainda assim, chegar até certo ponto, e apenas concordar, que se as coisas suscetíveis foram até aqui, é porque era hora de parar.

Joyce Gabriella Barros.

14 de janeiro de 2014

A água com que havia lavado sua blusa




“Eu era um jovem louro e saudável quando adentrei a baía de Guanabara, errei pelas ruas do Rio de Janeiro e conheci Teresa. Ao ouvir cantar Teresa, caí de amores pelo seu idioma, e após três meses embatucado, senti que tinha a história do alemão na ponta dos dedos. A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era o meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa. No princípio ela até gostou, ficou lisonjeada quando lhe disse que estava escrevendo um livro nela. Depois deu pra ter ciúmes, deu pra me recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou. Sem ela, perdi o fio do novelo, voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e ir embora para Hamburgo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco, eu tinha me viciado em Teresa. Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom, então fui a Copacabana procurar as putas. Pagava pra escrever nelas e talvez lhes pagasse além do devido, pois elas simulavam orgasmos que me roubavam toda a concentração. Toquei na casa de Teresa, estava casada, chorei, ela me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido não vinha. Passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever nas suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, nas coxas. E elas mostravam esses escritos às colegas, que muito os apreciavam, e subiam ao meu apartamento e me pediam que escrevesse o livro na cara delas, no pescoço, depois despiam a blusa e me ofereciam os seios, a barriga e as costas. E davam a ler meus escritos a novas colegas, que subiam ao meu apartamento e me imploravam para arrancar as suas calcinhas, e o negro das minhas letras reluzia em suas nádegas rosadas. Moças entravam e saíam da minha vida, e o meu livro se dispersava por aí, cada capítulo a voar para um lado. Foi quando apareceu aquela que se deitou na minha cama e me ensinou a escrever de trás pra diante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência, até que eu cunhasse, no limite das forças, a frase final: e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado sua blusa.”
Chico Buarque – Budapeste