4 de fevereiro de 2016

Para amar uma ruiva, por Camila Fernandes

Para amar uma ruiva é preciso haver coração de sobejo. Não que as ruivas não se amem facilmente. Na verdade, é comum que sejam amadas por muitos. Basta às vezes um só olhar para que isso aconteça. É que, uma vez acesa a chama, nunca será pequena; será sempre fogo denso, impiedoso, inquisidor. Portanto, para amar uma ruiva é preciso saber queimar. É preciso brincar sem medo com fogo. E é preciso também respeitá-lo – o fogo que nasce no crânio da ruiva feito cabelo, que lhe afogueia as faces. Um fogo que, quando afrontado, em lugar de aquecer, incinera. Judas tinha cabelos vermelhos, diz-se; como Esaú também os tinha, e antes dele, Caim. Waterhouse pintou Lamia, lenda de sedução, com cabelos vermelhos; as madeixas com que a Vênus de Boticcelli cobre languidamente o sexo não são de outra cor que não a do fogo. Cor que é certamente um sinal de perigo. Sinal claro de divindade. 

Para amar uma ruiva é preciso fitá-la intensamente nos olhos – sejam azuis do mar, verdes dos fiordes ou, mais raramente, castanhos como a terra que os consumirá – e provar-lhe a ausência do medo. Conquistá-la no olhar primeiramente, e só depois no toque – pois tu certamente quererás tocar a pele muito, muito clara, de uma claridade quase ofuscante, mesmo sob o sol maldoso dos trópicos. Quererás isso como teus pulmões querem o ar. Eu sei porque já quis. Mas, antes disso, terás de provocar seu sorriso, e embora sorrisos sejam fáceis na boca-morango da ruiva, não penses que serão todos teus. Alguns serão da tua tolice, da tua presunção, e estes ela te dará sem cerimônia, sem promessa, sem futuro. Serão paina ao vento, macios e inúteis. O sorriso que queres tomar da ruiva é o do fascínio. Pois ela, que fascina, não quer outra coisa que não ser fascinada. Ela é chama, e para incendiar deve ser alimentada com palavras hábeis, coração honesto, virilidade sem disfarces. É preciso atrevimento, mas nunca certeza; ela é amada por muitos, e pode escolher a quem amar. Então, quando obtiveres esse sorriso, estarás pronto para amar uma ruiva.

Para isso, começa sempre no beijo, mas que ele não seja sempre nos lábios-cereja, porque o óbvio a mortifica e ela deseja a surpresa, o ato que lhe faça justiça. Que teu beijo, pois, seja às vezes na superfície interna do pulso, onde veias de sangue azul chamam o olhar e provam que a pele é sensível; às vezes, no canto esquecido abaixo da orelha, que não é nem pescoço nem face, nem amor nem desejo – é algo entre mundos, e estar entre mundos é da natureza da mulher de cabelos carmesim, cobre ou dourado-fogo. Fica, pois, entre os mundos dela, como entre os lábios, entre os braços, entre os seios e afinal entre as coxas. Sem pressa, porém; pois para amar uma ruiva é preciso queimar como boa madeira no inverno: por toda uma noite, aquecendo a casa, crepitando baixo, estremecendo sempre até as cinzas. Para amar uma ruiva é necessário amar-lhe cada sarda, da testa ao ventre, saboreando-as como raspas de canela que temperam a pele-leite.

É preciso consumir-se nos cabelos-labareda. É preciso afogar-se no sexo, rubro jardim sem espinhos, e santificar seu aspecto perpetuamente virginal, a despeito do pecado, que ela te ensinará a adorar, se já não souberes. Para amar uma ruiva – e disso sei por já ter amado muitas – é preciso arder com graça. É preciso amar um pouco o próprio inferno. Por isso, ruiva, se é que deves mesmo me ferir, sê breve: tenho pressa do paraíso.

2 de fevereiro de 2016

Sobre a paranoia do egoísmo imortalizado

Ilustração: Felipe Frizon
Sim, o egoísmo exacerbado muitas vezes nos corrompe. Talvez seja a ser pouco tal adjetivo. Para adquirir mais intensidade, o egoísmo dilacera. Ele faz com que nós destruamos nossas vontades e aspirações mais ocultas, estejam elas distantes ou não das nossas mãos. 
O que acontece é que, ao tomar pra nós algum tipo de situação como verdade, a gente acaba retendo o mal por dentro - para os pessimistas de plantão, claro - e o que era colorido, vai sendo devorado por sei lá sabe o que, dragões de sangue e fogo inesgotável na garganta capazes e retrair toda aquela convicção que tínhamos até então. 
Um olfato sempre difere do outro, mas não se discute quando eles sabem do que ambos estão falando. Vai ver nem sempre é assim, mas o pior de tudo, é aquela ideia tendenciosa da consciência fazer todo um alarde em cima do visto enquanto o outro lado, para amenizar as coisas, fica fazendo joguinhos baratos de pleonasmos aleatórios, e isso não é saudável. 
É intransferível trocar os moldes comportamentais e emocionais e ver onde eles se encaixam melhor, talvez, reunir provas concretas daquilo que a imaginação insiste em dissipar pelas correntes da emoção e nunca: em hipótese alguma, guardar pra dentro de si. Vira bomba, e todos nós sabemos que toda bomba, uma hora vem à tona e torna a explodir. Ou melhor, implodir a nós mesmos.
Joyce Gabriella Barros.

12 de Janeiro de 2016 02:21am. Chicago, IL, USA,