30 de dezembro de 2014

Despretensiosos estopins

Um dos atributos da inexorabilidade das coisas está nas ligações que permutam por entre os calafrios solutos da alma, a chama que acende e apaga, o fogo que dói, e tudo aquilo que ousou escapar nas entrelinhas do tempo. 
É válido aceitar metaforicamente, águas de rios diferentes não se misturas, porém, continuam a serem rios e bastar-se do líquido, a correr, involuntariamente sob a mesma direção, e dependendo da perspectiva, evoluindo ao sol.
Trepidam as falas do inconsciente, despertando a chaga do memorável, da conexão voraz que consola a destreza do não mais estar, tornando assim, a conduta branda, baseando-se na presença das irrevogáveis ilusões do ser. Sim, talvez, pela inconstância dos desprazeres, pelo pouco bem concebido nas últimas horas, seja constatável afirmar a impossível presença de sangue na aorta, transparecendo assim, a plenitude da secura, da abstração de todos os movimentos possíveis, um refúgio em forma de passarela permeando sob o mar da indagação. Fatigante é, quem dera não ser, desconjuntar tanta obra num só momento, sem ousar exclamar palavra alguma naquilo que houve na presença dos votos secretos e mãos dadas na loucura, sob o pairar de devaneios sísmicos, e a chuva como coadjuvante testemunha do intercalo matinal. De todas esses insólitos desvarios, enloba-se a asserção da dúvida do ressurgimento do que não sucumbiu, em forma de vento intermitente que insiste em orbitar no litoral.

Joyce Gabriella Barros

27 de novembro de 2014

Quintana no dia de hoje...





Quando depositamos muita confiança ou expectativas em uma pessoa, o risco de se decepcionar é grande. As pessoas não estão neste mundo para satisfazer as nossas expectativas, assim como não estamos aqui, para satisfazer as delas. Temos que nos bastar... nos bastar sempre e quando procuramos estar com alguém, temos que nos conscientizar de que estamos juntos porque gostamos, porque queremos e nos sentimos bem, nunca por precisar de alguém. 

As pessoas não se precisam, elas se completam... não por serem metades, mas por serem inteiras, dispostas a dividir objetivos comuns, alegrias e vida. Com o tempo, você vai percebendo que para ser feliz com a outra pessoa, você precisa em primeiro lugar, não precisar dela. Percebe também que aquela pessoa que você ama (ou acha que ama) e que não quer nada com você, definitivamente, não é o homem ou a mulher de sua vida. Você aprende a gostar de você, a cuidar de você, e principalmente a gostar de quem gosta de você. O segredo é não cuidar das borboletas e sim cuidar do jardim para que elas venham até você. No final das contas, você vai achar não quem você estava procurando, mas quem estava procurando por você.

17 de setembro de 2014

"Estou ficando louca...", por Rubem Alves

Ela chegou e depois de uma breve indecisão disse: "Acho que estou ficando louca..."
Fiquei em silêncio, como o caçador que espera o voo da caça, pois esta é a minha profissão: sou um caçador de palavras. 
Era certo que alguma mudança surpreendente ocorrera com os seus pensamentos. Acostumada com as palavras domesticadas e de voo curto que diariamente se moviam em seu mundo interior, ela deveria ter se assustado com o súbito surgimento de uma outra entidade de cuja existência jamais suspeitara, escondida que estivera ao abrigo da densa vegetação que marca o início da obscuridade da alma. Recebera a visita de um emissário do inconsciente: pensamentos que nunca tivera, incomuns, desconhecidos... ela ignorava sua origem e nada sabia do seu destino. Descobria-se subitamente sem terra sólida sob os seus pés, flutuando sobre o mistério. Era isso que me dizia com sua curta declaração: "Acho que estou ficando louca..."
Mas eu nada sabia nem da cor, nem da forma, nem os movimentos dessa ave misteriosa que a assustava. Por isso fiquei quieto, à espera... confesso que senti um calafrio de prazer. Aves engaioladas são sempre banais e podem ser compradas em qualquer lugar. Não lhes dedico qualquer atenção, pois delas os jornais e a tagarelice cotidiana estão cheios. Mas estas aves selvagens que se anunciam com o nome de loucura nascem do desconhecido e levam-nos a voar por mundos onde nunca estivemos.
Aí ela continuou, explicando o que acontecera: "Eu sou uma pessoa prática, descomplicada. Gosto de cozinhar. E o faço de forma competente, automática, sem pensar. Corto as cebolas, as cebolinhas, os tomates, e vou fazendo as coisas que devem ser feitas da forma como sempre fiz. Estas coisas e estes atos nunca foram merecedores da minha atenção. Enquanto cozinho, meus pensamentos se concentram no prato terminado e no prazer de comer com os amigos. 
Mas, na semana passada, uma coisa estranha aconteceu. Peguei uma cebola, igual a todas as outras, cortei uma rodela como sempre fiz, e levei um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Como era isso possível? Já havia visto e cortado centenas de cebolas e agora era como se estivesse vendo a cebola pela primeira vez! Olhei para a sua forma arredondada, senti a lisura de sua pelo sob os meus dedos, vi seus anéis circulares, perfeitos, encaixados uns dentro dos outros, surpreendi-me com sua quase transparência, a luz se fragmentando em centenas de pontos em sua superfície brilhante. Meu automatismo prático se interrompeu. Deixei a faca sobre a pia e fiquei com a rodela de cebola na minha mão, encantada. Esqueci-me do prato que estava preparando. Naquele momento eu não queria fazer prato alguma para o deleite da boca, pois havia encontrado outra forma de deleite: o deleite dos olhos. Meus olhos estavam comento a rodela de cebola. E eu senti um prazer que nunca sentira antes. 
Pela primeira vez na vida vi que a cebola era bonita. Se fosse pintora, pintaria uma cebola. Se fosse fotógrafa, fotografaria uma cebola... Minha cebola deixara de ser uma criatura do sacolão, à mercê de facas e maxilares mastigantes, e aparecia como uma criatura encantada, moradora do mundo da beleza, ao lado de jóias e de obras de arte. 
Ao acordar desse transe místico, em que vi a rodela de cebola como se fosse vitral de uma catedral gótica, fiquei assustada. Que coisa estranha deveria estar acontecendo com os meus olhos? que transformação deveria ter acontecido comigo mesma? 
Se eu contasse aos meus amigos o que tinha acontecido, eles não entenderiam. Pensariam que eu estava fazendo gozação. Ririam. Não poderiam ver minha alegria vendo a rodela de cebola. Eu tive que fazer silêncio sobre a minha experiência. Pensei, então, que estava ficando louca. Pois loucura deve ser isto: Aquilo que a gente experimente e sobre o que tem de se calar. Pois se a gente disser, os outros não entenderão e começaram a pensar que a gente tem um parafuso solto. 
Mas o pior é que o que aconteceu com a cebola começou a acontecer com tudo. Meus olhos já não eram mais os mesmos. Estavam possuídos por uma potência psicodélica. Viam o que sempre tinham visto de um jeito como nunca tinham visto. Meus quadros ficaram diferentes. E o mais perturbador era a felicidade que eu sentia em tudo. E eu pensei: se eu continuar a me sentir feliz assim, todos os meus grandes planos irão por terra! Se eu me sentir nas pequenas coisas, pararei de lutar para realizar as grandes coisas...
Ela estava assustada com a felicidade. Assustada ao perceber que a alegria mora muito perto. Basta saber ver. E eu lhe disse: "Você não está ficando louca. Você está ficando poeta..."
A experiência poética é ver coisas grandiosas que ninguém mais vê. É ver o absolutamente banal, que está bem diante do nariz, sob uma luz diferente. Quando isso acontece, cada objeto cotidiano se transforma na entrada de um mundo encantado. E a gente se põe a viajar sem sair do lugar... aquilo que procuramos se encontra bem debaixo dos nossos olhos. 
Não é preciso fazer nada. Não é preciso viajar a lugares distantes. Coisa mais inútil haverá que a viagem, quando os olhos vêem tudo em preto-e-branco? Não é preciso também realizar grandes proezas de luta e trabalho - pois a beleza se encontra pronta ao alcance da mão... Dizia Blake: "Ver o mundo num grão de areia e um céu numa flor selvagem...".
Não, ela não estava ficando louca. Mas eu compreendi o seu espanto. Descobria-se poeta. E a loucura da poesia está precisamente nisto: na compreensão de que basta que a beleza more dentro dos olhos para que o mundo inteiro seja transfigurado por eles... A felicidade nasce de dentro do olhar que foi tocado pela poesia... pág.68.

Alves, Rubem. 'As Melhores Crônicas de Rubem Alves'/Rubem Alves - Campinas, SP; Papirus, 2008.

4 de agosto de 2014

Ética para meu filho, por Fernando Savater

     Robinson Crusoé passeia por uma das praias da ilha onde o confinaram uma inoportuna tempestade seguida de naufrágio. Leva seu papagaio ao ombro e protege-se do sol graças à sombrinha fabricada com folhas de palmeira, que o faz sentir orgulho, com razão, de sua habilidade. Ele acha que, em vista das circunstâncias, até que não se arranjou mal. Agora tem um refúgio para se proteger contra as inclemências do tempo e os ataques dos animais selvagens, sabe onde conseguir alimento e bebida, tem roupas para se abrigar, que ele mesmo fez com elementos naturais da ilha, os dóceis serviços de um pequeno rebanho de cabras, etc. Enfim, acha que sabe arranjar-se para levar mais ou menos sua vida de náufrago solitário. Robinson continua passeando, e está contente consigo mesmo, que por um momento parece não sentir falta de nada. De repente, detém-se com um sobressalto. Ali, na areia branca, desenha-se uma marca que vai revolucionar toda a sua pacífica existência: a pegada humana.

imagem: hypeness

De quem será? Amigo ou inimigo? Talvez um inimigo que possa se tornar amigo? Homem ou mulher? Como se entenderá com ele, ou ela? Como irá tratá-lo? Robinson já estava acostumado a se fazer perguntas desde que chegou à ilha e a resolver problemas do modo mais engenhoso possível: O que vou comer? Onde vou me abrigar? Como posso proteger-me do sol? Mas agora a situação não é a mesma, pois não se trata de acontecimentos naturais, como a fome ou a chuva, nem de animais selvagens, mas com um outro ser humano, ou seja, com outro Robinson ou com outros Robinsons e Robinsonas. Diante dos elementos ou dos animais, Robinson pôde comportar-se sem atender a nada além de sua necessidade de sobrevivência, tratava-se de ver se podia com eles ou se eles podiam com ele, sem mais complicações. Mas diante de seres humanos a coisa já não é tão simples. Ele deve sobreviver, sem dúvida, mas não de qualquer modo. Se Robinson transformou-se num animal como os outros que perambulam pela selva, por causa de sua solidão e sua desventura, sua única preocupação será saber se o desconhecido dono da pegada é um inimigo a ser eliminado ou uma presa a ser devorada. Mas se quer continuar sendo homem… Então já não estará lidando com uma presa ou um simples inimigo, mas com um rival ou um possível companheiro: de todo o modo, com um semelhante.

Enquanto está só, Robinson enfrenta questões técnicas, mecânicas, higiênicas, inclusive científicas, se é que você me entende. A questão é salvar a vida num meio hostil e desconhecido. Mas quando ele encontra a pegada de Sexta-Feira na areia da praia começam seus problemas éticos. Já não se trata apenas de sobreviver; como um animal selvagem ou uma alcachofra, perdido na natureza; agora precisa começar a viver humanamente, ou seja, com outros ou contra outros homens, mas entre homens. O que faz a vida ser “humana” é o transcorrer em companhia de seres humanos, falando com eles, pactuando e mentindo, sendo respeitado ou traído, amando, fazendo projetos e recordando o passado, desafiando-se, organizando juntos as coisas comuns, jogando, trocando símbolos… A ética não se ocupa em saber como se alimentar melhor, qual a maneira mais recomendável de se proteger do frio ou o que fazer para atravessar um rio sem se afogar, todas questões muito importantes, sem dúvida, para a sobrevivência em determinadas circunstâncias; o que interessa à ética, o que constitui sua especialidade, é como viver bem a vida humana, a vida que transcorre entre seres humanos. Se não soubermos como nos arranjar para sobreviver em meio de perigos naturais, perderemos a vida, o que sem dúvida será um grande dano; mas, se não tivermos nem ideia de ética, perderemos ou prejudicaremos o humano de nossa vida, o que, francamente, também não tem graça nenhuma.

22 de julho de 2014

"Escutatória", por Rubem Alves




No último sábado (19 de julho), o Brasil perdeu um de seus nomes da literatura, o escritor mineiro de Boa Esperança, nascido em 15 de setembro de 1933, Rubem Alves. Em toda sua vida, Rubem se dedicou poesia da vida e à beleza abrigada em cada parte do mundo, e não apenas escrevia, como também foi um grande psicanalista, educador, teólogo, autor de livros e artigos abordando temas religiosos, educacionais e existenciais, além de uma série de livros infantis. Sua perda é lamentável, mas ele deixou uma dose significativa na nossa cultura e representou muitos e outros tantos enquanto estava entre nós. Ele deixou um legado muito importante, e um de seus mais produtos dizeres: A arte de ouvir, em seu texto "Escutatória", fragmento do livro 'O amor que acende a lua, pág. 65.', ele fala da urgência das pessoas em falarem o que pensam, mas esquecem de dar seus ouvidor "à torcer", veja:

"Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma“. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia


Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.

Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.“ Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião.

Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U“ definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino...“ Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. 

A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto..."

Descanse em paz, Rubem Alves! 


30 de abril de 2014

Gritos da juventude de 1968

    Se você o último post, o texto "A música dos valores perdidos", do jornalista José Telles, acerca da qualidade musical na qual estamos totalmente inseridos atualmente, mesmo que por algum tipo de obrigação, é indispensável articular esse discurso de Caetano Veloso enroupado com "plástico verde", em 15 de setembro de 1968 na terceira edição do Festival Internacional da Canção Popular, o FIC, da TV Globo.          
   Ele trouxe para o festival “É Proibido Proibir”, uma canção que evocava um dos gritos da juventude numa frase pintada em muros de Paris durante os movimentos estudantis ocorridos em maio de 1968, e foi recebido pelo público com uma intensa vaia, ao que reagiu fazendo um discurso inflamado com frases de antologia em que criticava a juventude por sua postura conservadora, veja: 

      "Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. Hoje não tem Fernando Pessoa. Eu hoje vim dizer aqui, que quem teve coragem de assumir a estrutura de festival, não com o medo que o senhor Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê‑la explodir foi Gilberto Gil e fui eu. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu! Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso, viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido a dar esse viva aqui, não tem nada a ver com vocês. O problema é o seguinte: vocês estão querendo policiar a música brasileira. O Maranhão apresentou, este ano, uma música com arranjo de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano passado, que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso! Eu quero dizer ao júri: me desclassifique. Eu não tenho nada a ver com isso. Nada a ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil está comigo, para nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entramos no festival pra isso. Não é Gil? Não fingimos. Não fingimos aqui que desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca me ouviu falar assim. Entendeu? Eu só queria dizer isso, baby. Sabe como é? Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! junto com ele, tá entendendo? E quanto a vocês… O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto! Fora do tom, sem melodia. Como é júri? Não acertaram? Qualificaram a melodia de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É assim que eu quero ver. Chega!"



É possível ouvir o discurso na íntegra, clicando aqui.

28 de abril de 2014

"A música dos valores perdidos", por José Teles

Tem rapariga aí? Se tem levante a mão!”. A maioria, as moças, levanta a mão.

Diante de uma platéia de milhares de pessoas, quase todas muito jovens, pelo menos um terço de adolescentes, o vocalista da banda que se diz de forró utiliza uma de suas palavras prediletas (dele só não, de todas bandas do gênero). As outras são “gaia”, “cabaré”, e bebida em geral, com ênfase na cachaça. Esta cena aconteceu no ano passado, numa das cidades de destaque do agreste (mas se repete em qualquer uma onde estas bandas se apresentam). Nos anos 70, e provavelmente ainda nos anos 80, o vocalista teria dificuldades em deixar a cidade.

O secretário de cultura Ariano Suassuna foi bastante criticado, numa aula-espetáculo, no ano passado, por ter malhando uma música da banda Calipso, que ele achava (deve continuar achando, claro) de mau gosto. Vai daí que mostraram a ele algumas letras das bandas de “forró”, e Ariano exclamou: “Eita que é pior do que eu pensava”. Do que ele, e muito mais gente jamais imaginou.

Pruma matéria que escrevi no São João passado baixei algumas músicas bem representativas destas bandas. Não vou nem citar letras, porque este jornal é visto por leitores virtuais de família. Mas me arrisco a dizer alguns títulos, vamos lá: Calcinha no chão (Caviar com Rapadura), Zé Priquito (Duquinha), Fiel à putaria (Felipão Forró Moral), Chefe do puteiro (Aviões do forró), Mulher roleira (Saia Rodada), Mulher roleira a resposta (Forró Real), Chico Rola (Bonde do Forró), Banho de língua (Solteirões do Forró), Vou dá-lhe de cano de ferro (Forró Chacal), Dinheiro na mão, calcinha no chão (Saia Rodada), Sou viciado em putaria (Ferro na Boneca), Abre as pernas e dê uma sentadinha (Gaviões do forró), Tapa na cara, puxão no cabelo (Swing do forró). Esta é uma pequeníssima lista do repertório das bandas.

Porém o culpado desta “desculhambação” não é culpa exatamente das bandas, ou dos empresários que as financiam, já que na grande parte delas, cantores, músicos e bailarinos são meros empregados do cara que investe no grupo. O buraco é mais embaixo. E aí faço um paralelo com o turbo folk, um subgênero musical que surgiu na antiga Iugoslávia, quando o país estava esfacelando-se. Dilacerado por guerras étnicas, em pleno governo do tresloucado Slobodan Milosevic surgiu o turbo folk, mistura de pop, com música regional sérvia e oriental. As estrelas da turbo folk vestiam-se como se vestem as vocalistas das bandas de “forró”, parafraseando Luiz Gonzaga, as blusas terminavam muito cedo, as saias e shortes começavam muito tarde. Numa entrevista ao jornal inglês The Guardian, o diretor do Centro de Estudos alternativos de Belgrado. Milan Nikolic, afirmou, em 2003, que o regime Milosevic incentivou uma música que destruiu o bom-gosto e relevou o primitivismo estético,. Pior, o glamur, a facilidade estética, pegou em cheio uma juventude que perdeu a crença nos políticos, nos valores morais de uma sociedade dominada pela máfia, que, por sua vez, dominava o governo.

A cantora Ceca foi uma espécie de Ivete Sangalo do turbo folk (ainda está na estrada, porém com menor sucesso). Foram comprados 100 mil vídeos do seu casamento com Arkan, mafioso e líder de grupo para-militares na Croácia e Bósnia. Arkan foi assassinado em 2000. Ceca presa em 2003. Ela não foi a única envolvida com a polícia, depois da queda de Milosevic, muitos dos ídolos do turbo folk envolveram-se com a justa pelo envolvimento com a poderosa máfia de Belgrado.

A temática da turbo folk era sexo, nacionalismo e drogas. Lukas, o maior ídolo masculino do turbo folk pregava em sua música o uso da cocaína. Um dos seus maiores hits chama-se White (a cor do pó, se é que alguém ignora), e ele, segundo o Guardian, costumava afirmar: “Se cocaína é uma droga, pode me chamar de viciado”. Esteticamente, além da pouca roupa, a sanfona é o instrumento que se destaca tanto no turbo folk quanto no chamado forró eletrônico, instrumento decorativo, ali muito mais para lembrar das raízes da música tradicional. Ressaltando-se que não se tem notícia de ligação entre bandas de “forró” e crime organizado. No que elas são iguaizinhas é que proliferaram em meio a débâcle de valores estéticos, morais, e éticos, e despolitização da juventude. Com a volta da governabilidade nas repúblicas da antiga Iugoslávia, o turbo folk perdeu a força, vende ainda porém muito menos do que no passado, hoje é apenas uma música popular para se dançar, e não a trilha sonora de um regime condenado por, entre outras lástimas, genocídio.

Aqui o que se autodenomina “forró estilizado” continua de vento em popa. Tomou o lugar do forró autêntico nos principais arraiais juninos do Nordeste. Sem falso moralismo, nem elitismo, um fenômeno lamentável, e merecedor de maior atenção. Quando um vocalista de uma banda de música popular, em plena praça pública, de uma grande cidade, com presença de autoridades competentes (e suas respectivas patroas) pergunta se tem “rapariga na platéia”, alguma coisa está fora de ordem. Quando canta uma canção (canção ?!!!) que tem como tema uma transa de uma moça com dois rapazes (ao mesmo tempo), e o refrão é “É vou dá-lhe de cano de ferro/e toma cano de ferro!”, alguma coisa está muito doente. Sem esquecer que uma juventude cuja cabeça é feita por tal tipo de música é a que vai tomar as rédeas do poder daqui a alguns poucos anos.

JOSÉ TELES Como quase todo pernambucano, nasceu na Paraíba (Campina Grande); Começou no jornalismo, em 1980, no extinto Correio de Pernambuco, onde passou apenas três meses, vindo em seguida para o Jornal do Commércio. Foi repórter esportivo até 1984. Depois de um tempo fora da grande imprensa, escrevendo no Pasquim, no jornal de humor O Papa-Figo (fundado por ele, Ral e Bione em 1984), voltou ao JC em 1987, como crítico musical, função que exerce até hoje. Em 1992, passou a escrever uma cronica semanal, na coluna Curto & Grosso, Teles também é escritor


Infelizmente é essa juventude do ''quanto pior, melhor'' que tomará as rédias do futuro no nosso país, o conteúdo estético dos dias de hoje, terá reflexos amanhã. 


23 de abril de 2014

Sob os efeitos tônicos da madrugada fria e dosagens altas de substâncias catastróficas

Eu sei, é madrugada, mas não consigo dormir, tampouco sei se chega a fazer sentido tudo o que há abaixo, imagens psicodélicas circundam a minha mente, e esse já é a sexta vez que ouço "Sirens" sem parar, mas eu precisava desoprimir, e essa foi a forma que encontrei de soprar o vento e a mágoa que levo de mim mesma, que soterrava o meu coração:



Você está prestes a cometer um erro, mas pensa bem, e vê, não vale a pena. Porém, um sagaz sopro conspirador do que muitos chamam de destino, te induzem, te fazem cometer tal delito com sede tão perversa que atinge seu próprio ser, sem transpor o respirar. A fala se transgride, faz com que os nervos do coração comecem a palpitar pro pior, e a sua mente cria um sensacionalismo acima daqueles receios que nunca existiram de fato. Ninguém é atrevido suficientemente a ponto de pedir perdão por aquilo que não fez por mal, ou talvez até tenha feito, mas quem disse que isso vem ao caso? Existem conjecturas que nos transmitem concomitâncias que são reprovadas automaticamente pelas ordens dos dias, perante o roteiro impetuoso que a vida consiste em se lançar para cumprir tabela. 

Manter a calma, esvair-se do som, de um futuro que te espera, não é demais. Jamais esquecendo que a clareza dos seus dias, poderão vir adiante, se você permitir, que simplesmente seja feito o balanço dos seus desperdícios até o determinado ponto em que se encontra a vida atual. De nada adianta ser absolvido, os estigmas sempre ficarão cravados na pele como uma âncora finca um barco no mar, serão sempre necessários fatos que comprovem a displicência para justificar a transgressão, e que nunca poderão ser outra vez mais vistas, sempre haverão suspicácias infindáveis amarradas à sola do sapato, munido daquilo que chamam de compaixão inexistente, então, apenas pergunto, de que adianta? Apesar dos giros do mundo serem cíclicos e muitas coisas acabarem voltando sempre pro mesmo lugar, apesar de tudo estar abarrotado de reminiscências, cabe a si mesmo o papel de continuar, seguir em frente, ver onde tudo vai acabar, e ainda assim, chegar até certo ponto, e apenas concordar, que se as coisas suscetíveis foram até aqui, é porque era hora de parar.

Joyce Gabriella Barros.

14 de janeiro de 2014

A água com que havia lavado sua blusa




“Eu era um jovem louro e saudável quando adentrei a baía de Guanabara, errei pelas ruas do Rio de Janeiro e conheci Teresa. Ao ouvir cantar Teresa, caí de amores pelo seu idioma, e após três meses embatucado, senti que tinha a história do alemão na ponta dos dedos. A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era o meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa. No princípio ela até gostou, ficou lisonjeada quando lhe disse que estava escrevendo um livro nela. Depois deu pra ter ciúmes, deu pra me recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou. Sem ela, perdi o fio do novelo, voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e ir embora para Hamburgo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco, eu tinha me viciado em Teresa. Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom, então fui a Copacabana procurar as putas. Pagava pra escrever nelas e talvez lhes pagasse além do devido, pois elas simulavam orgasmos que me roubavam toda a concentração. Toquei na casa de Teresa, estava casada, chorei, ela me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido não vinha. Passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever nas suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, nas coxas. E elas mostravam esses escritos às colegas, que muito os apreciavam, e subiam ao meu apartamento e me pediam que escrevesse o livro na cara delas, no pescoço, depois despiam a blusa e me ofereciam os seios, a barriga e as costas. E davam a ler meus escritos a novas colegas, que subiam ao meu apartamento e me imploravam para arrancar as suas calcinhas, e o negro das minhas letras reluzia em suas nádegas rosadas. Moças entravam e saíam da minha vida, e o meu livro se dispersava por aí, cada capítulo a voar para um lado. Foi quando apareceu aquela que se deitou na minha cama e me ensinou a escrever de trás pra diante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência, até que eu cunhasse, no limite das forças, a frase final: e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado sua blusa.”
Chico Buarque – Budapeste