17 de setembro de 2014

"Estou ficando louca...", por Rubem Alves

Ela chegou e depois de uma breve indecisão disse: "Acho que estou ficando louca..."
Fiquei em silêncio, como o caçador que espera o voo da caça, pois esta é a minha profissão: sou um caçador de palavras. 
Era certo que alguma mudança surpreendente ocorrera com os seus pensamentos. Acostumada com as palavras domesticadas e de voo curto que diariamente se moviam em seu mundo interior, ela deveria ter se assustado com o súbito surgimento de uma outra entidade de cuja existência jamais suspeitara, escondida que estivera ao abrigo da densa vegetação que marca o início da obscuridade da alma. Recebera a visita de um emissário do inconsciente: pensamentos que nunca tivera, incomuns, desconhecidos... ela ignorava sua origem e nada sabia do seu destino. Descobria-se subitamente sem terra sólida sob os seus pés, flutuando sobre o mistério. Era isso que me dizia com sua curta declaração: "Acho que estou ficando louca..."
Mas eu nada sabia nem da cor, nem da forma, nem os movimentos dessa ave misteriosa que a assustava. Por isso fiquei quieto, à espera... confesso que senti um calafrio de prazer. Aves engaioladas são sempre banais e podem ser compradas em qualquer lugar. Não lhes dedico qualquer atenção, pois delas os jornais e a tagarelice cotidiana estão cheios. Mas estas aves selvagens que se anunciam com o nome de loucura nascem do desconhecido e levam-nos a voar por mundos onde nunca estivemos.
Aí ela continuou, explicando o que acontecera: "Eu sou uma pessoa prática, descomplicada. Gosto de cozinhar. E o faço de forma competente, automática, sem pensar. Corto as cebolas, as cebolinhas, os tomates, e vou fazendo as coisas que devem ser feitas da forma como sempre fiz. Estas coisas e estes atos nunca foram merecedores da minha atenção. Enquanto cozinho, meus pensamentos se concentram no prato terminado e no prazer de comer com os amigos. 
Mas, na semana passada, uma coisa estranha aconteceu. Peguei uma cebola, igual a todas as outras, cortei uma rodela como sempre fiz, e levei um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Como era isso possível? Já havia visto e cortado centenas de cebolas e agora era como se estivesse vendo a cebola pela primeira vez! Olhei para a sua forma arredondada, senti a lisura de sua pelo sob os meus dedos, vi seus anéis circulares, perfeitos, encaixados uns dentro dos outros, surpreendi-me com sua quase transparência, a luz se fragmentando em centenas de pontos em sua superfície brilhante. Meu automatismo prático se interrompeu. Deixei a faca sobre a pia e fiquei com a rodela de cebola na minha mão, encantada. Esqueci-me do prato que estava preparando. Naquele momento eu não queria fazer prato alguma para o deleite da boca, pois havia encontrado outra forma de deleite: o deleite dos olhos. Meus olhos estavam comento a rodela de cebola. E eu senti um prazer que nunca sentira antes. 
Pela primeira vez na vida vi que a cebola era bonita. Se fosse pintora, pintaria uma cebola. Se fosse fotógrafa, fotografaria uma cebola... Minha cebola deixara de ser uma criatura do sacolão, à mercê de facas e maxilares mastigantes, e aparecia como uma criatura encantada, moradora do mundo da beleza, ao lado de jóias e de obras de arte. 
Ao acordar desse transe místico, em que vi a rodela de cebola como se fosse vitral de uma catedral gótica, fiquei assustada. Que coisa estranha deveria estar acontecendo com os meus olhos? que transformação deveria ter acontecido comigo mesma? 
Se eu contasse aos meus amigos o que tinha acontecido, eles não entenderiam. Pensariam que eu estava fazendo gozação. Ririam. Não poderiam ver minha alegria vendo a rodela de cebola. Eu tive que fazer silêncio sobre a minha experiência. Pensei, então, que estava ficando louca. Pois loucura deve ser isto: Aquilo que a gente experimente e sobre o que tem de se calar. Pois se a gente disser, os outros não entenderão e começaram a pensar que a gente tem um parafuso solto. 
Mas o pior é que o que aconteceu com a cebola começou a acontecer com tudo. Meus olhos já não eram mais os mesmos. Estavam possuídos por uma potência psicodélica. Viam o que sempre tinham visto de um jeito como nunca tinham visto. Meus quadros ficaram diferentes. E o mais perturbador era a felicidade que eu sentia em tudo. E eu pensei: se eu continuar a me sentir feliz assim, todos os meus grandes planos irão por terra! Se eu me sentir nas pequenas coisas, pararei de lutar para realizar as grandes coisas...
Ela estava assustada com a felicidade. Assustada ao perceber que a alegria mora muito perto. Basta saber ver. E eu lhe disse: "Você não está ficando louca. Você está ficando poeta..."
A experiência poética é ver coisas grandiosas que ninguém mais vê. É ver o absolutamente banal, que está bem diante do nariz, sob uma luz diferente. Quando isso acontece, cada objeto cotidiano se transforma na entrada de um mundo encantado. E a gente se põe a viajar sem sair do lugar... aquilo que procuramos se encontra bem debaixo dos nossos olhos. 
Não é preciso fazer nada. Não é preciso viajar a lugares distantes. Coisa mais inútil haverá que a viagem, quando os olhos vêem tudo em preto-e-branco? Não é preciso também realizar grandes proezas de luta e trabalho - pois a beleza se encontra pronta ao alcance da mão... Dizia Blake: "Ver o mundo num grão de areia e um céu numa flor selvagem...".
Não, ela não estava ficando louca. Mas eu compreendi o seu espanto. Descobria-se poeta. E a loucura da poesia está precisamente nisto: na compreensão de que basta que a beleza more dentro dos olhos para que o mundo inteiro seja transfigurado por eles... A felicidade nasce de dentro do olhar que foi tocado pela poesia... pág.68.

Alves, Rubem. 'As Melhores Crônicas de Rubem Alves'/Rubem Alves - Campinas, SP; Papirus, 2008.

4 de agosto de 2014

Ética para meu filho, por Fernando Savater

     Robinson Crusoé passeia por uma das praias da ilha onde o confinaram uma inoportuna tempestade seguida de naufrágio. Leva seu papagaio ao ombro e protege-se do sol graças à sombrinha fabricada com folhas de palmeira, que o faz sentir orgulho, com razão, de sua habilidade. Ele acha que, em vista das circunstâncias, até que não se arranjou mal. Agora tem um refúgio para se proteger contra as inclemências do tempo e os ataques dos animais selvagens, sabe onde conseguir alimento e bebida, tem roupas para se abrigar, que ele mesmo fez com elementos naturais da ilha, os dóceis serviços de um pequeno rebanho de cabras, etc. Enfim, acha que sabe arranjar-se para levar mais ou menos sua vida de náufrago solitário. Robinson continua passeando, e está contente consigo mesmo, que por um momento parece não sentir falta de nada. De repente, detém-se com um sobressalto. Ali, na areia branca, desenha-se uma marca que vai revolucionar toda a sua pacífica existência: a pegada humana.

imagem: hypeness

De quem será? Amigo ou inimigo? Talvez um inimigo que possa se tornar amigo? Homem ou mulher? Como se entenderá com ele, ou ela? Como irá tratá-lo? Robinson já estava acostumado a se fazer perguntas desde que chegou à ilha e a resolver problemas do modo mais engenhoso possível: O que vou comer? Onde vou me abrigar? Como posso proteger-me do sol? Mas agora a situação não é a mesma, pois não se trata de acontecimentos naturais, como a fome ou a chuva, nem de animais selvagens, mas com um outro ser humano, ou seja, com outro Robinson ou com outros Robinsons e Robinsonas. Diante dos elementos ou dos animais, Robinson pôde comportar-se sem atender a nada além de sua necessidade de sobrevivência, tratava-se de ver se podia com eles ou se eles podiam com ele, sem mais complicações. Mas diante de seres humanos a coisa já não é tão simples. Ele deve sobreviver, sem dúvida, mas não de qualquer modo. Se Robinson transformou-se num animal como os outros que perambulam pela selva, por causa de sua solidão e sua desventura, sua única preocupação será saber se o desconhecido dono da pegada é um inimigo a ser eliminado ou uma presa a ser devorada. Mas se quer continuar sendo homem… Então já não estará lidando com uma presa ou um simples inimigo, mas com um rival ou um possível companheiro: de todo o modo, com um semelhante.

Enquanto está só, Robinson enfrenta questões técnicas, mecânicas, higiênicas, inclusive científicas, se é que você me entende. A questão é salvar a vida num meio hostil e desconhecido. Mas quando ele encontra a pegada de Sexta-Feira na areia da praia começam seus problemas éticos. Já não se trata apenas de sobreviver; como um animal selvagem ou uma alcachofra, perdido na natureza; agora precisa começar a viver humanamente, ou seja, com outros ou contra outros homens, mas entre homens. O que faz a vida ser “humana” é o transcorrer em companhia de seres humanos, falando com eles, pactuando e mentindo, sendo respeitado ou traído, amando, fazendo projetos e recordando o passado, desafiando-se, organizando juntos as coisas comuns, jogando, trocando símbolos… A ética não se ocupa em saber como se alimentar melhor, qual a maneira mais recomendável de se proteger do frio ou o que fazer para atravessar um rio sem se afogar, todas questões muito importantes, sem dúvida, para a sobrevivência em determinadas circunstâncias; o que interessa à ética, o que constitui sua especialidade, é como viver bem a vida humana, a vida que transcorre entre seres humanos. Se não soubermos como nos arranjar para sobreviver em meio de perigos naturais, perderemos a vida, o que sem dúvida será um grande dano; mas, se não tivermos nem ideia de ética, perderemos ou prejudicaremos o humano de nossa vida, o que, francamente, também não tem graça nenhuma.